Desisto. Volto para trás, em busca do ponto de partida. Com tanta volta já não encontro a origem. Aliás pressinto que a minha origem, assim como o meu nome, vagueia contigo. Levaste-os para outro lado. Continuo, caminho em círculos, triângulos e quadrados. Até esgotar todas as hipóteses.
Encosto-me à parede. Cada rugosidade me conforta. Cada aresta viva amansa-me a alma. Contemplo-a. Cada brecha, cada pedaço de cimento arrancado. Mas ali está ela. Indiferente a tudo isto, a continuar o papel dela, de cabeça erguida e com a dignidade intacta. Sento-me numa pedra por ali caída. Ponho-me a pensar as voltas que esta pedra já deu. Toda a sua vida, longa, preenchida, violenta até. Até não ser mais que um simples impecilho, pontapeada e arrumada num qualquer canto. Mas aqui estou eu, a prestar uma devida homenagem, como que naquele momento sentar-me naquela pedra, naquele momento, naquela noite, estou a reconhecer a sua existência. Estou a dar-lhe a atenção que ainda merece.
Fico ali sentado não sei quanto tempo. As sombras mudam de sítio, vão dançando à minha volta. Vou brincando com elas. Um diálogo surdo, de movimentos e imperceptíveis interacções. Enrolo um cigarro, vagarosamente. Cada baforada de fumo é mais uma pincelada naquela tela que se estende à minha volta. Inspiro fundo, fecho os olhos e aprecio o silêncio da minha rua. Pelo menos é minha durante aquela noite. Controlo-a, conheço já cada canto e recanto. E ela já me conhece a mim.
--------------------------------------------------------
Nestes momentos apercebo-me da minha insignificância. Estou
sozinho afinal. Limito-me a controlar o inanimado, o que é pacato e escuro, as
sombras moldáveis, a natureza sem vontade, as coisas frágeis, tudo. Menos o
fogo. O teu fogo.
E quando sou eu a chamar por ti? Sentes? Acho que
simplesmente ouves, como estás predestinada a ouvir qualquer voz, qualquer
estímulo. Mas e se eu gritar? Como já te gritei tantas vezes… Palavras duras,
dilacerantes, tudo dito com um propósito estrategicamente definido, a intenção de
te ecoar na cabeça repetidamente, como se te enfiasse aqui, dentro do meu peito
vazio, e te trancasse sem piedade. Como se está mal aqui dentro - pensas tu -
assustada e frágil. Por esta hora já deves estar a sufocar, asfixiada, enquanto
tentas gritar desesperadamente para que te deixe sair. Pois é… Vive-se mal
dentro de mim, mas eu quero que tu experimentes… E essa viagem, fazes através
das minhas palavras, as piores, que tenho guardadas só para ti.
Comoves-me. Sempre tiveste essa capacidade, de me comoveres
a mim e aos outros, com esse teu excesso de ternura e de bondade. Que criatura
mais bonita essa tua pessoa. E quando te descobri por dentro, por dentro dessas
roupas, pensava que eras cândida mas afinal eras fogo. E a tua bondade onde
estava? Afinal eras animal. Nada contra. Só me esqueci de te dizer que, depois
de convertida em pecadora, nunca mais olharia para ti da mesma forma.
Descontrolaste-me e eu comecei a perder-te. Mas como assim
perder-te? Jamais permitiria isso. Eu estava dentro de ti, e tu, sempre que
fugias, levavas a minha pulsação contigo. Obrigaste-me a correr para salvar a
minha vida. Corria atrás de ti completamente demente, em autênticos labirintos
que já confundia com as minhas próprias entranhas, caminhos confusos que
pareciam os da minha consciência.
Encostei-me à parede e aguardei calmamente. Optei pela contemplação
do tempo e do futuro, até que chegou o dia em que te encontrei e segurei. Como
foi bom sentir-te. Percorri-te toda enquanto ainda estavas quente, e como
arfavas… Converti esse respirar de terror em prazer, para mim, estavas a gemer
por me teres. Foi tão bom, lembras-te? Claro que não…
No fim, olhavas o vazio, enquanto eu enrolava um cigarro
vagarosamente. Entre baforadas densas e silenciosas, encostei a tua cabeça
naquela pedra. Ainda hoje lá permanece a tua marca, a vermelho, a cor do teu
batom.
Agora, sinto-te perto, e já sei onde te encontrar.
Texto com a colaboração de Ana Luísa Costa.
Sem comentários:
Enviar um comentário